segunda-feira, 30 de abril de 2012

Os Vingadores - Crítica


“Os Vingadores” tinha grandes chances de dar errado e, se tivesse sido feito há 15 anos, seria provavelmente um desastre narrativo e visual ou uma comédia escrachada. Um grupo de heróis composto por um soldado que veste uma bandeira dos EUA, um milionário arrogante, um deus nórdico, um arqueiro e uma supergostosa enfrentando alienígenas em plena luz do dia tem elementos suficientes para cair na galhofa. A esperada megaprodução da Marvel, no entanto, destrói qualquer expectativa negativa e coloca-se entre as melhores adaptações cinematográficas de uma história em quadrinhos.

O responsável pelo ato heroico é Joss Whedon. Fã assumido de HQ (e cultuado pela comunidade nerd por suas telesséries, “Buffy: A Caça-Vampiros” e “Firefly”), Whedon transformou em filme a experiência de folhear as aventuras protagonizadas pela superequipe da Marvel. O que não é exatamente uma surpresa afinal o próprio escritor já colaborou para a publicação da editora, em “Os Surpreendentes X-Men”. Temia-se, na verdade, sua habilidade como diretor – ele só havia dirigido um longa-metragem anteriormente, “Serenity” (2005) –, principalmente porque tratava-se de uma megaprodução de US$ 220 milhões e que reunia alguns dos maiores super-heróis da Marvel na mesma tela. 

“Os Vingadores”, no entanto, consegue preservar a mitologia que existe há décadas, mantém a personalidade de seus personagens e deve agradar tanto o leitor regular quanto aquele sujeito que só conheceu o Homem de Ferro pelo filme de 2008. Whedon cumpriu a cartilha básica das histórias em quadrinhos da editora americana: “todo herói Marvel, antes de se juntar a outro herói, deve lutar contra ele”. O cineasta mantém a tradição e a repete com cuidado: todos os combates entre os personagens são coerentes e têm um sentido – diferente do que acontecia em “X-Men Origens: Wolverine” (2009), por exemplo, onde as lutas eram vazios exibicionismos visuais e pirotécnicos.

A trama, na teoria, é econômica: Loki (Tom Hiddleston) planeja vingar-se dos acontecimentos vistos em “Thor” (2011) e realiza uma aliança com uma raça alienígena para destruir a Terra. Para impedir a catástrofe, o líder da agência secreta S.H.I.E.L.D. Nick Fury (Samuel L. Jackson) convoca os super-humanos para formar um time e enfrentar a ameaça. E é só. Mas é uma simplicidade recheada com uma boa interação entre os integrantes. Cada personagem tem seu ponto de vista defendido e uma motivação que, se não chega a ser complexa e profunda, também não o transforma em mero enfeite. As discussões entre eles funcionam e é interessante ver como a equipe é formada vagarosamente, aproveitando cada conflito para solidificar a personalidade de cada um. 

Como já não era nenhuma surpresa, Robert Downey Jr. rouba a cena e ilumina o cinema cada vez que aparece, principalmente quando interage com Chris Evans e Mark Ruffalo. Os dois, por sinal, também merecem destaque. Evans, que já havia surpreendido pela performance e carisma em “Capitão América – O Primeiro Vingador” (2011), não se deixa ser engolido pelo magnetismo de Downey Jr. e, na hora certa, convence como o líder natural do grupo. E Ruffalo consegue transformar em natural sua interpretação como Bruce Banner/Hulk e é possível que o público nem perceba que o personagem foi feito por outro ator no filme de 2008 (Edward Norton).

Scarlett Johansson (Viúva Negra) e Jeremy Renner (Gavião Arqueiro) também ganham seu espaço, ainda que sejam coadjuvantes. E Tom Hiddleston mais uma vez dá profundidade a Loki – apesar de sua motivação forçada – e o personagem ganha uma nova habilidade para fazer jus à fama de “deus da trapaça”. 

No entanto o grande herói, mesmo, foi Whedon, que não apenas soube orquestrar as estrelas que tinha disponíveis, mas também realizou uma direção segura, e até brincou com as linguagens e estéticas cinematográficas e dos quadrinhos. Vai ter fã chorando de emoção com o delicioso plano-sequência durante a épica batalha final: por meio de recursos digitais, o diretor visita com sua câmera em movimentos impossíveis cada herói em ação. 

A segurança de Whedon lhe garantiu inclusive outras brincadeiras visuais, como quando a câmera tenta encontrar e focar em Thor, enquanto ele enfrenta os alienígenas. Ou mesmo na cena em que Stark e Banner, dois gênios de personalidade opostas, conversam com uma tela transparente dividindo seus rostos, como se estivessem olhando num espelho. O tranquilo Whedon diretor permitiu até que o Whedon roteirista arriscasse, com sucesso, transformar Hulk num alívio cômico – algo que não aconteceu nos filmes de 2003 e de 2008. Em vez de assustar, Hulk vai causar risos. Não, gargalhadas.  

“Os Vingadores” chega para confirmar uma tendência: ser nerd é legal. Durante uma cena, há uma divertida piada sobre colecionar cards de super-heróis. Noutra época, a brincadeira poderia até ridicularizar o ato nerd, mas no filme ele ganha uma importância fundamental (e exagerada se for levado à sério) para a história. É curioso pensar que filmes de super-heróis já foram piada em Hollywood – a ponto de uma produtora realizar o lendário filme de 1994 do Quarteto Fantástico nas coxas só para não perder os direitos sobre o título. 

Desde “X-Men”, em 2000, tudo mudou: a indústria, que passou a investir no “gênero”, e o público, que passou a aceitá-lo. É claro que para cada “Homem de Ferro” (2008) vinha um “Lanterna Verde” (2011), mas a adaptação aconteceu de forma rápida: para “X-Men”, Brian Singer deu uma cara mais de ficção-científica do que de HQ, os uniformes tinham que ser preto, pós-Matrix, e com tom mais realista – havia até uma piada sobre Wolverine e os colantes amarelos. Uma década depois, “X-Men: Primeira Classe” tornou-se o melhor filme da franquia e os uniformes eram justamente amarelos. E o público aceitou numa boa.

 O filme da superequipe da Marvel pousa nos cinemas como um triunfo bilateral: um ótimo filme e que deverá bater alguns recordes de bilheteria. “Os Vingadores” faz jus ao título: trata-se da vingança dos nerds.


domingo, 22 de abril de 2012

"American Pie - O Reencontro e o último pedaço de torta


Eles estão de volta. O elenco original de “American Pie – A Primeira Vez é Inesquecível” (1999) voltou a se reunir para mostrar que é possível envelhecer sem perder a ternura. Já que a virgindade eles perderam no primeiro filme. De fato, a concepção de “American Pie” era uma homenagem assumida às comédias sexuais adolescentes que marcaram a geração anterior, com filmes como “Porky’s” (1985). “A Primeira Transa de Jonathan” (1985) e “A Última Festa de Solteiro” (1985). Tudo o que o grupo de amigos queria era perder a virgindade antes da formatura da escola.

Treze anos depois, eles ainda pensam em sexo, mesmo casados e com filhos. “Nosso foco foi recapturar a magia do primeiro filme”, declarou o diretor Jon Hurwitz em entrevista coletiva para divulgar o lançamento. Ele e o colega Hayden Schlossberg são os responsáveis por “American Pie – O Reencontro”, produção responsável por resgatar a saga sexual de Jim Levenstein (Jason Biggs) e seus amigos, que nos últimos anos tinha sido rebaixada a uma série de lançamentos direto em DVD, sem o elenco ou humor do filme original.
Como mostrado nas duas continuações “oficiais” do cinema, o jovem destruidor de tortas foi para a faculdade e casou-se com a amiga Michelle (Alyson Hannigan), e, agora, também é pai de um menino de dois anos. O que o rapaz não imaginava é que ter uma esposa não é necessariamente garantia de sexo frequente. “Como em todos os filmes ‘American Pie’, Jim encontra-se mais uma vez frustrado sexualmente. E quando ele está frustrado sexualmente, acaba tomando algumas decisões erradas. E quando toma essas decisões, nós fazemos um filme”, explicou o próprio intérprete de Jim, Jason Biggs.

O casal protagonista caiu na rotina sexual e o convite para um reencontro festivo com a turma de 1999 da escola East Great Falls, no subúrbio de sua cidade natal, poderá ajudá-los a reacender a chama da paixão. Mais importante, porém, é o sentimento nostálgico de rever todos os personagens agora na casa dos 30 anos.

“Geralmente, nessa idade, você começa a se perguntar o que aconteceu com certas pessoas de sua escola e analisa onde você está na vida e onde imaginou que estaria”, sugeriu Schlossberg. “Algumas pessoas alcançaram o sucesso, outras estão casadas, outras têm filhos, outros ainda estão solteiros. Queríamos realmente explorar todas essas diferentes histórias”, explicou o codiretor, deixando claro que a proposta do filme era atrair os espectadores que cresceram junto com a franquia.

Tata-se do próprio caso da dupla de diretores, amigos desde o tempo do colégio e que assistiram ao primeiro longa ainda na faculdade. Os dois viraram cineastas e escreveram o roteiro dos filmes “Harold & Kumar”, que no Brasil ganharam o título de “Madrugada Muito Louca” (2004). Após dirigir “Madrugada Muito Louca 2” (2008), eles preparavam a pré-produção de “Um Natal Muito Louco” (2011) quando receberam o convite para comandar o retorno da franquia “American Pie”. Aceitaram, é claro, apesar de conscientes do desafio de oferecer mais uma fatia de uma torta que já não é tão fresca.

A dupla confessa ter pedido orientação a Paul Weitz, diretor do primeiro longa e produtor desta nova produção. “Ele conversou conosco e sua maior sugestão foi para que fizéssemos nosso próprio filme”, disse Schlossberg. Mas aí, eles se defrontaram com novo problema. Como reunir todo o elenco de novo?

A primeira grande missão da dupla foi convencer todos os atores do longa de 1999 a topar o retorno – não apenas os protagonistas, mas também aqueles que só tinham três minutos de cena, mas que caíram nas graças do público. Um caso, pelo menos, era favas contada: John Cho, figurante dos filmes originais que estourou justamente como o Harold dos filmes “Madrugada Muito Louca”. Alguns também poderiam ser facilmente convencidos, como Tara Reid, que não fez mais nada exceto uma desnecessária cirurgia plástica, ou Mena Suvari, que parecia despontar para o sucesso (em 1999 ela ainda estrelou “Beleza Americana”), mas o mais longe que alcançou foi um papel na extinta série “A Sete Palmos”.

Com outros atores, porém, poderia haver problema de agenda, como Alyson Hannigan, que tem um papel fixo na série “How I Met Your Mother”, e havia o perigo de Jason Biggs e Seann William Scott acharem que não tinham mais nada a ver com aqueles personagens. Vale lembrar que Chris Klein já tinha feito pulado o terceiro filme por achar, na época, que deveria diversificar. Após reuniões, almoços e bate-papos, os diretores conseguiram juntar o cast, inclusive Klein. “Quando eles viram que nosso objetivo era trazer de volta tudo o que funcionou no primeiro filme, todos embarcaram”, comemorou Hurwitz.

O caso mais emblemático foi o de Seann William Scott, que ameaçou fazer sucesso em filmes que tinham The Rock ou Bruce Willis, mas entrou numa espiral autodestrutiva quando não chegou em lugar algum. Após assinar contrato para participar do novo “American Pie”, ele se internou voluntariamente numa clínica de reabilitação. Klein também veio a público confessar que tinha virado alcoólatra. Dramas reais que também renderiam um filme interessante, ainda que não uma comédia.

Scott, porém, nunca deixou de ser lembrado pelo papel de Stifler. Seu personagem passou de coadjuvante no primeiro longa a praticamente um protagonista nas sequências e virou a grande marca da franquia: três das quatro produções lançadas direto em vídeo trazem a história de seu irmão caçula e primo, numa tentativa de copiar o sucesso do machista, ignorante e irresponsável sujeito. E o próprio ator não nega seu amor eterno ao personagem e ao filme. “Eu ficaria feliz em fazer isso enquanto puder, porque me divirto muito. Eu nunca vou ganhar um Oscar mesmo, então posso me divertir com meus amigos”, disse na entrevista coletiva.

Mostrando bom-humor, ele ainda refletiu: “Bem, Melissa McCarthy (“Missão Madrinha de Casamento”) cagou numa pia e foi indicada ao Oscar e neste filme eu cago num isopor de gelo…”, brincou, meio que dando um recado aos membros da Academia.
É inegável, no entanto, que o maior beneficiado pelo retorno de “American Pie” é seu verdadeiro protagonista, Jason Biggs. Após a comédia adolescente, ele arriscou uma carreira sólida e até trabalhou com Woody Allen (“Igual a Tudo na Vida”), mas também acabou enveredando por fracassos (“Menina dos Olhos”…).

Hoje, aos 33 anos, ele olha com mais carinho sua própria trajetória e não lamenta ter brilhado apenas com um único personagem. “Cheguei a um momento de minha vida no qual aceitei que ‘American Pie’ foi um grande presente”, refletiu o ator. “É claro que quero fazer outros papéis, mas se tiver que fazer esses filmes para o resto da vida eu serei um cara de sorte. Amo esse personagem”, confessou.

Apesar da carreira irregular, o ator tem seus fãs, a começar pelos diretores. “Ele é um dos artistas cômicos mais subestimados de Hollywood”, afirmou Hurwitz. “Trabalhamos com muitas pessoas talentosas e ele está no topo”.
Um dos motivos por sua admiração, explicou o diretor, é a coragem de Biggs ao encarar cenas constrangedoras, como “fazer amor” com uma torta ou masturbar-se utilizando uma supercola. Sua nova missão para “O Reencontro” subiu mais um nível na escala da vergonha alheia e agora ele topou um nu frontal, numa cena hilária na qual expõe seu pênis. Vale lembrar que o órgão genital de Jim é praticamente um personagem da franquia, mas nunca chegou a, digamos, dar as caras.

E já que era para mostrar, Biggs sugeriu que fosse “bem feito”. “Lembro-me de dizer aos diretores: ‘Mantenha a imagem por mais tempo para que as pessoas saibam que é o meu pênis. Caso contrário, pra que fazer isso?’”, brincou o ator. Era, por sinal, o primeiro dia de filmagem do longa e Biggs aproveitou a situação para lembrar os velhos tempos ao lado da colega Alyson Hannigan, que interpreta sua esposa. “Foi algo do tipo: ‘Bem-vinda de volta à franquia, Alyson! E aqui está meu pênis!”.


 O público já pode conferir se o talento de Biggs é realmente grande com a estreia de “American Pie – O Reencontro”, em cartaz nos cinemas brasileiros.

terça-feira, 13 de março de 2012

O Espião que Sabia Demais materializa o anti-James Bond


Quando lançou seus livros de espionagem, ainda na década de 1960, John le Carré declarou que suas obras seguiam o caminho oposto ao dos romances de Ian Fleming, criador do herói britânico 007.

Ninguém discute o grau de fantasia sugerido pelos livros e, principalmente, pelos filmes de James Bond sobre o mundo da espionagem, com suas armas mirabolantes, ternos refinados, supervilões e belas mulheres a cada esquina. Mas dá para imaginar a frustração de le Carré ao assistir a essas produções – afinal, ele mesmo foi um agente da MI-5, a inteligência britânica, e sabe muito bem que seria mais fácil encontrar um espião desabafando com seu terapeuta do que saltando de paraquedas com um rifle na mão ou uma caneta explosiva no bolso.

É nesse tom melancólico e realista que se encontra o grande trunfo de “O Espião Que Sabia Demais”, adaptação da obra de le Carré pelo cineasta sueco Tomas Alfredson (“Deixe Ela Entrar”). Com roteiro de Peter Straughan (“Os Homens que Encaravam Cabras”) e Bridget O’Connor (que faleceu em 2010), a adaptação conta a história do agente George Smiley (Gary Oldman), que recebe a missão de descobrir qual de seus colegas do mais alto posto do Serviço Secreto Inglês está trabalhando com os soviéticos durante a Guerra Fria.

Como se vê, é uma sinopse simples, presente em todos os filmes da franquia “Missão Impossível”. Mas “O Espião Que Sabia Demais” retira todo o glamour e ação resfolegante da espionagem, substituindo o charme de um Ethan Hunt por velhos cansados e decepcionados com suas próprias vidas.
Para construir esse universo, Alfredson criou um clima de opressão e claustrofobia, apoiado pela fotografia escura de Hoyte van Hoytema, e ofereceu uma história entrecortada por flashbacks, numa montagem que entrega aos poucos quem são os personagens e para onde eles poderiam ir – como se o próprio espectador estivesse investigando o caso.

Apesar de o diretor ficar conhecido apenas recentemente, ele já é um veterano na direção de filmes e séries na televisão da Suécia e sua experiência fica evidente pela composição dos quadros e movimentos de câmera: os primeiros minutos que apresentam Smiley, por exemplo, se resumem a acompanhá-lo caminhar calmamente pelas ruas de Londres – sem falas. É curioso notar que ele está cercado de grades por onde passa, como se sua rotina o trancafiasse.

Na trama, os espiões são meros funcionários públicos que precisam brigar com os chefes para conseguir financiamento para as missões. Seu entretenimento não é escalar montanhas, mas assistir a TV. O que o incomoda não são os ladrões de seu carro conversível, mas uma mosca dentro do veículo. E ele não conquista mulheres – aliás, sua esposa o deixou.

São detalhes que parecem desnecessários e até supérfluos, mas compõem um quadro complexo, com personagens cheios de facetas (ora suspeitos, ora amigáveis), interpretados por um elenco inglês formidável: além de Oldman, John Hurt, Colin Firth, Toby Jones, Mark Strong, David Dencik, Ciarán Hinds, Benedict Cumberbatch e Tom Hardy, entre outros.

Mas o show é mesmo de Oldman, inspirado como o agente à beira da aposentadoria. Seja no tom de voz, seja na forma de se sentar ou analisar as situações, o ator entrega uma atuação perfeita (como na cena em que rememora o encontro de anos atrás com seu grande inimigo, Karla, líder da KGB), apoiado por ótimas falas – como na conversa com uma ex-espiã (Kathy Burke) sobre a época da 2ª Guerra Mundial, quando a Inglaterra ainda tinha alguma relevância política no mundo.
Curiosamente, a feição melancólica de George Smiley até combinaria com as caras fechadas dos três JBs que dominaram a espionagem no mundo do entretenimento na última década: James Bond (Daniel Craig), Jason Bourne (Matt Damon) e Jack Bauer (Kiefer Sutherland). Mas o discretíssimo sorriso de Gary Oldman no final do filme, ao som de “La Mer”, mostra qual deles poderia, de fato, existir no mundo real.

A Dama de Ferro - Crítica


“Carinhosamente” apelidada de “Dama de Ferro” pelos soviéticos durante a Guerra Fria, a ex-primeira-ministra Margaret Thatcher é uma das figuras mais controversas do século 20. Única mulher a alcançar o mais alto cargo político do Reino Unido, Thatcher dividiu e divide opiniões até hoje sobre seu legado: ela foi responsável por planos econômicos que privilegiaram privatizações e a rédea solta no mercado financeiro – o que, para muitos, salvou a Inglaterra da recessão. Para outros, no entanto, sua conduta aumentou a divisão entre ricos e pobres e marcou um retrocesso nas reformas sociais e nos serviços públicos. Heroína ou vilã, “A Dama de Ferro”, novo filme de Phyllida Lloyd (“Mamma Mia!”, de 2008), não tem a menor pretensão de encontrar o lugar histórico da personagem.

A ideia de alguém repressor ou agressivo, provocado pelo irônico título, cai por terra já na cena inicial, que mostra Thatcher nos dias de hoje, aos 80 anos e anônima, tentando comprar leite num mercadinho. A fragilidade da personagem é ainda mais evidenciada na cena seguinte, quando ela chega em casa e começa a reclamar do preço do produto ao seu marido, Denis (Jim Broadbent), e imediatamente é revelado que ele não existe – Thatcher sofre de Alzheimer, com perda da memória e frequentes alucinações. E é este o caminho escolhido pelo roteiro de Abi Morgan (“Shame”): explorar a vulnerabilidade da protagonista e abster-se de comentários políticos mais incisivos.

Há aqueles que podem se incomodar, e não sem razão. Em plena época de movimentos como o Occupy Wall Street e as revoltas populares em toda a Europa devido à crise econômica, seria interessante conferir, no cinema, a visão política de uma das maiores defensoras do neoliberalismo. O filme, de fato, adota a perspectiva de Thatcher, porém de forma superficial e, na maioria das vezes, sem analisar as consequências de suas atitudes, sejam elas positivas ou negativas.

Assuntos de extrema importância para a história recente britânica, como os ataques a bomba do IRA (Exército Republicano Irlandês) e a questão separatista da Irlanda do Norte, além do clima de decadência do império passam rapidamente na tela, sem que se convide o espectador a refletir e tomar partido.

O único momento em que Phyllida arrisca-se a opinar é durante a cena da aula de direção de Thatcher à sua filha, Carol (Olivia Colman). Para evitar uma colisão com um ciclista, a primeira-ministra ordena à filha: “Vá para a direita”. A moça responde: “Mas se eu for para a direita, não estarei no caminho errado?”. Thatcher reforça e pega no volante: “Vá para a direita!”, ela grita, quase batendo o carro. A cena, ainda assim, permite uma analogia sobre o direitismo inerente de Thatcher, mas também insere a dúvida: a direita é o lado errado?

Phyllida não ignora as revoltas e a insatisfação do povo diante das medidas econômicas da Primeira Ministra (são mostradas imagens de arquivo de protestos e repressão policial), porém nunca fica claro de fato os resultados do thatcherismo.

O longa tampouco aprofunda um dos momentos mais tensos de seu mandato de 11 anos: a Guerra das Falklands/Malvinas. O conflito pela recuperação do arquipélago pelo Reino Unido causou a morte de quase 1000 pessoas entre ingleses e argentinos, e, exceto por um diálogo afiado com um diplomata norte-americano, não são mostrados os bastidores da crise (como a coerção de Thatcher, obrigando os franceses a colaborar na guerra).

Mas tudo isso pode ser relativizado pelo fato de “A Dama de Ferro” não ser um filme político, e sim um estudo de personagem. Nesse caso, revela-se eficiente em seu objetivo, ainda que, como toda cinebiografia, padeça da suavização dos defeitos de seu herói. O ponto de vista adotado é o de Thatcher já demente, e não o da mulher em plena ascensão política. Desta forma, todas as situações estão contaminadas pela parcialidade de alguém que revê a própria vida com lamentação – não porque acha que falhou como política, mas como mulher de família (num certo momento, o marido imaginário a lembra de que voltar o DVD repetidamente para rever as cenas dos filhos crianças não irá levá-la de volta no tempo).

Sua luta para conquistar espaço no universo predominantemente machista do Parlamento inglês, o treinamento vocal e de postura para criar uma imagem confiável, a recuperação econômica da Inglaterra, a vitória na Guerra das Falklands, a parceria com o governo dos Estados Unidos contra a União Soviética, e o descontentamento público e dos próprios líderes do Partido Conservador (sugerindo uma traição) remetem às memórias de alguém que seleciona apenas o que quer lembrar, não o que de fato aconteceu.

Para ressaltar esse clima, Phyllida usa da fotografia de Elliot Davis (“Crepúsculo”) para construir uma atmosfera intimista, adotando algumas vezes a câmera na mão e olhares frontais, como se o expectador estivesse no lugar da protagonista.

Mas é inegável que “A Dama de Ferro” só se torna relevante pela espantosa interpretação de Meryl Streep. Voz, postura, olhar, caminhar, Streep vai muito além da eficiente maquiagem e encarna Margaret Thatcher, a jovem política que se utiliza de gritos irritantes para se fazer ouvir e a líder de uma nação que humilha seus companheiros sem permitir espaço para argumentações ou debates. Seu trabalho fica ainda mais evidente com a montagem não linear e extremamente quebrada, indo e voltando no tempo diversas vezes para encontrá-la passando por diferentes fases.

Apesar da evolução (e regressão) psicológica da personagem, é por meio da interpretação de Streep, novamente indicada ao Oscar, que podemos enxergar a essência da personagem – uma mulher que desejava fazer algo na vida e não passar seus últimos dias lavando xícaras de chá.

É Kermit, mas pode chamar de Caco



Kermit e os Muppets estão de volta aos cinemas. Espere aí, “Kermit”? Pois é, se você o conhecia como “Caco, o Sapo”, é melhor ir se acostumando, pois o líder dos bonecos criados pelo mestre dos fantoches Jim Henson (1936-1990) foi rebatizado com o seu nome original americano para o lançamento do filme “Os Muppets” no Brasil, que acontece nesta sexta (2/12).


Caco… ou melhor, Kermit, Miss Piggy e cia. chegaram ao Brasil com a série “Vila Sésamo” nos anos 1970 e o nome do sapo marcou gerações. Para que a mudança de identidade ocorresse da forma mais natural possível, o próprio Kermit (na verdade, seu dublador e manipulador Steve Whitmire) veio ao país explicar a confusão. Segundo o próprio, quando um produtor brasileiro dos anos 1970 perguntou qual era seu nome, o anfíbio ficou nervoso e acabou tossindo. “Eu disse ‘cof, cof’ e ele entendeu Caco”, explica Kermit. 
A explicação é oficial e será exibida num curta antes do filme, ainda que Miss Piggy, enciumada, tenha outra versão para esta história. Ela garante que o sapo usou o nome Caco só para azarar incógnito num carnaval carioca.

É claro que se trata de uma brincadeira e os motivos da mudança são bem diferentes. Há 40 anos, a estratégia das empresas era adotar nomes regionais, já que o mercado era fragmentado. Já hoje, no mundo conectado pela internet, é muito mais interessante ter uma marca única, facilitando a identidade e economizando custos sem a necessidade de adaptações nas embalagens dos produtos. É por isso, por exemplo, que o “Ursinho Puff” virou “Ursinho Pooh” e a fada “Sininho” (de “Peter Pan”) virou “Tinker Bell”. Para se ter uma ideia, Kermit é conhecido como “Cocas” em Portugal, “Gustavo” na Espanha e, em alguns países latinos, é chamado de “Rana René”.

Mas durante suas entrevistas para os jornalistas brasileiros, o querido sapo mostrou que não se incomoda se o chamarem por outro nome. “Podem me chamar de Caco, afinal é assim que sou conhecido aqui por uns 30 anos”.

Sim, foi o próprio sapo quem conversou com a imprensa e não seu manipulador, o ventríloquo Whitmire (responsável pelo boneco desde a morte de Henson, em 1990). E é impressionante como o personagem ganha vida, com movimentos naturais e até com cacoetes. Ele é simpaticíssimo e faz jornalistas adultos se sentirem criancinhas. Mas fica uma dúvida: e a nova geração, que cresceu assistindo a “Shrek” e às animações da Pixar, será que vai se interessar por bonecos de pano animados com a mão?

Kermit acredita que sim. “Acho que o fato de sermos reais e interagirmos, como atores de verdade, conta muitos pontos para nós. Isso não se consegue com um desenho”, disse. É claro que ele conta também com o apoio dos pais, que acompanharam os Muppets nos últimos 30 anos. “O que eu espero é que todos os nossos fãs mais velhos, que cresceram com a gente, agora nos apresentem aos seus filhos”, Kermit dá o recado.

E o retorno dos bonecos (o último longa-metragem foi em 1999, “Muppets do Espaço”) não é um fenômeno isolado: o potencial nostálgico de séries e personagens de décadas atrás tem rendido diversos filmes de sucesso, apelando tanto para o público adulto, quanto para as crianças, como os recentes regressos de “Smurfs” (que rendeu US$ 141 milhões) e de “Rei Leão 3D” (que surpreendeu com US$ 93 milhões arrecadados).

A Disney, que já é dona da Pixar e de parte da Marvel, adquiriu os direitos dos personagens de Jim Henson em 2004 e bolou uma estratégia de marketing viral em 2009, postando no YouTube um vídeo com os bonecos ao som da música “Bohemian Rhapsody”, do Queen. O resultado foi mais de 23 milhões de visualizações, o que estimulou novas brincadeiras que invadiram as redes sociais e, pouco a pouco, foram resgatando “Os Muppets” do limbo.

Por curiosidade, foi justamente o sumiço dos bonecos há mais de uma década o ponto de partida do roteiro elaborado por Jason Segel (“Ressaca de Amor”), um fã assumido dos Muppets. Na história, os personagens contam com a ajuda de Gary (Segel), sua namorada Mary (Amy Adams) e seu irmão Walter, ele próprio um boneco, para reconquistar o sucesso do público. A direção é de James Bobin, da série “Flight of the Conchords”.

O longa também conta com diversas participações especiais, como o vocalista Dave Grohl, da banda “Foo Fighters”, e o ator Jim Parsons – o físico Sheldon Cooper da série “The Big Bang Theory”. Mas Kermit assume que gostou mais foi de uma certa garota durante as filmagens. “Confesso que há um lugar especial no meu coraçãozinho de sapo para Rashida Jones (série ‘Parks and Recreation’). Se você der uma boa olhada nela, vai entender o porquê. Mas não diga isso para a Miss Piggy, no entanto.”

Hugh Jackman é um gigante de aço


O destino prega peças curiosas: não fosse por um pequeno incidente, provavelmente Hugh Jackman ainda estaria preso aos musicais na Austrália e assistiria com a família em algum cinema de Sydney a “Gigantes de Aço”. Acontece que o ator Dougray Scott, que estava cotado para interpretar Wolverine, machucou-se durante as gravações de “Missão Impossível 2”, e o diretor Bryan Singer precisou recorrer às pressas aos atores anteriormente rejeitados. Ao rever o teste de Jackman, bingo!

O resultado, como todos já sabem, foi uma carreia meteórica: em pouquíssimo tempo já protagonizava sozinho um filme de ação (“Van Helsing: O Caçador de Monstros”), trabalhou com dois dos grandes diretores americanos da nova geração – Darren Aronofsky, em “A Fonte da Vida”, e Christopher Nolan, em “O Grande Truque” –, filmou com Woody Allen em “Scoop – O Grande Furo” e até apresentou o Oscar, em 2009 – oportunidade que muitos atores veteranos jamais tiveram.

De volta aos blockbusters com “Gigantes de Aço”, que liderou por duas semanas o ranking dos filmes mais assistidos nos EUA, Jackman interpreta um mau caráter de bom coração, Charlie Kenton, ex-pugilista decadente que descobre que tem um filho de 10 anos e tenta rapidamente se desfazer dele. “Foi muito divertido ver até onde poderíamos levar o personagem”, o ator comenta, sobre o comportamento politicamente incorreto de Charlie. “Este é um filme da DreamWorks distribuído pela Disney e o protagonista vende seu filho nos primeiros 20 minutos! Quando mostramos para o estúdio, pensamos que eles pediriam para refazermos tudo.”

E é exatamente a relação problemática entre esse homem irresponsável e um garoto inteligente o que move o filme e tem conquistado os americanos. Ainda que o mau comportamento de Charlie em relação ao próprio filho fique próxima de ser cruel. “Depois de alguns takes”, lembra o diretor Shawn Levy (“Uma Noite no Museu”), “Hugh vinha todo preocupado até mim e perguntava ‘Você tem certeza de que não estou sendo muito duro com esse menino?’”. A preocupação do astro não é à toa: ele é pai de um garoto da mesma idade do personagem de Dakota Goyo (a versão mirim do deus do trovão no filme “Thor”).

O fator que desencadeará a redenção de Charlie, como não poderia deixar de ser, será um robô-sucata encontrada no ferro-velho, mas que demonstrará, a cada nova luta de box robótico futurista, uma resistência incrível. Como se vê, apesar de ter o boxe como cenário, “Gigantes de Aço” privilegia o coração em detrimento da ação. “Para fazer um filme de robô em 2011, e para que ele seja único, ele tinha que ser diferente”, comenta o diretor, sugerindo que tentou caminhar num trajeto oposto ao traçado por outra produção de Steven Spielberg, “Transformers”.

E para que a emoção da interação entre pai, filho e máquina fosse legítima, a produção optou por utilizar a presença física dos modelos do robô sempre que possível, em vez dos efeitos digitais e do fundo verde. “Imagine como foi para Dakota Goyo, com 11 anos de idade! Era simplesmente extraordinário e você vê isso no filme – é um sonho tornado realidade”, comenta Jackman.

A busca pela realidade foi tanta que o astro australiano decidiu engordar para interpretar um pugilista aposentado, inclusive conservando uma barriguinha. Acontece que, um mês antes de as filmagens começarem, o diretor percebeu que o ator não caberia no figurino do filme e solicitou imediatamente um emagrecimento. “Acho que o público não está pronto para ver um Hugh Jackman barrigudo”, brincou Levy.
Jackman recuperou a forma, o que será muito útil em breve, quando voltará a interpretar o mutante mais popular da Marvel em “The Wolverine”, a ser dirigido por James Mangold (“Encontro Explosivo”). Ainda se sabe muito pouco sobre a história, que terá o Japão como cenário, mas o ator já adianta que os problemas da memória do personagem ficaram para trás. “Já exploramos muito isso nos outros filmes”. Além disso, ele garante que a maior característica de Wolverine deverá ser potencializada. “Não acho que já vimos sua raiva expressa corretamente”, diz, para a alegria os fãs do personagem.

Antes de voltar a encarar o mutante de garras, porém, ele interpretará Jean Valjean no musical “Les Misérables”, dirigido por Tom Hooper (“O Discurso do Rei”), com Anne Hathaway e Russell Crowe no elenco. Ainda vai entrar em cartaz na comédia indie “Butter”, já exibida em festivais, e deve dar vida ao primeiro showman milionário P.T. Barnum em “The Greatest Showman on Earth”, lá em 2013. Ah, também vai apresentar um show sozinho num teatro da Broadway.


Com uma agenda tão concorrida, fica a pergunta: alguém ainda se lembra quem foi Dougray Scott?

sábado, 10 de março de 2012

Diretor de "A Separação" teme o próprio sucesso


Existe uma piada maldosa que diz que se você jogar um comprimido efervescente num copo com água, encontrará mais tensão e ação do que num filme iraniano. Quem ri disso desconhece o cinema de Ashgar Farhadi, responsável pelo suspense tenso de “Procurando Elly” (2009) e por um dos melhores filmes de 2011, “A Separação”.


O cinema de Farhadi é quase uma antítese das obras dos mais conhecidos nomes do cinema iraniano, como Abbas Kiarostami (“Cópia Fiel”), Jafar Panahi (“Fora do Jogo”) e Mohsen Makhmalbaf (“A Caminho de Kandahar”). Mas, cada um a seu modo, todos são importantes ao retratar a situação social e política que vive sua país, extremamente repressivo e ditatorial, utilizando o cinema como um grito de protesto e uma forma de comunicação com seu próprio povo e com os demais países do mundo – de fato, o resultado é uma cinematografia renovada e uma das mais relevantes do mundo atual.

Embora pareça uma novidade recente, Ashgar Farhadi chega a seu quinto filme como diretor com “A Separação”. O drama extremamente elogiado pelos críticos se tornou uma unanimidade a partir do barulho criado nos festivais pelos quais passou: até agora, já ganhou mais de 40 prêmios, entre eles o Urso de Ouro no Festival de Berlim, além do Urso de Prata para os atores Peyman Moadi e Leila Hatami. “A Separação” também ganhou o Globo de Ouro e é o favorito ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, tornando-se a segunda obra iraniana a realizar o feito (o primeiro foi “Filhos do Paraíso”, de Majid Majidi, em 1998), além de conquistar uma espetacular indicação a Melhor Roteiro Original para o próprio Farhadi.

O diretor não esconde a alegria pela repercussão, mas está consciente dos perigos que o estrondoso êxito pode acarretar à sua carreira. “O sucesso de um filme pode convencer o cineasta a tentar repetir seus próprios sucessos e entrar numa competição consigo mesmo. É preciso olhar para isso como algo temporário”, declarou durante o Festival de Cinema de Nova York. Ele também está ciente de que está chamando muita atenção para si mesmo, o que pode ser perigoso num país como o Irã.

Sem citar especificamente o aclamado filme, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Ramin Mehmanparast, declarou em janeiro que é comum que as premiações exaltem longas com temáticas relacionadas à pobreza e dificuldades de um país como o Irã. “Isso não deveria fazer nossos artistas ignorarem os pontos positivos e as evidentes características de nossa nação a fim de ilustrar o tipo de coisa bem recebida pelos organizadores de tais festivais”, criticou.

Farhadi sabe que pode enfrentar problemas maiores daqui para frente, e não apenas a censura do regime de Mahmoud Ahmadinejad. A ditadura no Irã tem fechado o cerco contra diretores que questionam o regime vigente e as prisões têm sido frequentes – um grande exemplo é Panahi, condenado a seis anos de prisão domiciliar e proibido de filmar pelos próximos 20 anos!

Ciente do perigo, ao contrário de seus colegas estabelecidos no exterior, Farhadi ainda mora em Teerã e tenta suavizar suas declarações para não criar conflitos com o regime. “A Separação” chegou a ter suas filmagens interrompidas após o diretor ter defendido Panahi e a produção só voltou a receber permissão para ser realizada após ele desculpar-se publicamente com o governo. Um ato que ele defende, ainda que lamente nas entrelinhas. “Qual é o sentido de se fazer um filme se ele não pode ser visto pelas 70 milhões de pessoas no meu país?”, questionou. Por esse motivo, Farhadi diz que é mais difícil conceder entrevistas sobre seus filmes do que realizá-los e sempre solicita ao seu tradutor que suas palavras sejam citadas com precisão, para não haver riscos dos jornalistas interpretarem equivocadamente algumas respostas.

E o cineasta tem concedido muitas entrevistas nos últimos meses por conta da dramática história do casal de classe média que decide se separar. A médica Simin (Leila) quer sair do Irã e oferecer uma condição de vida melhor para sua filha de 11 anos, Termeh (Sarina Farhadi). No entanto, seu marido, o bancário Nader (Moaadi), recusa-se a mudar de país, pois precisa cuidar de seu pai (Ali-Asghar Shalbazi), que sofre de Alzheimer. Os dois decidem ir à justiça pedir o divórcio, que é recusado pelo juiz. Só essa trama inicial já renderia discussões sobre a questão das leis e costumes iranianos, mas o roteiro vai mais fundo e coloca os personagens em situações que os levarão a confrontar e pôr em xeque suas próprias convicções morais.

É melhor não entrar em detalhes sobre a trama, mas é preciso saber que o casal opta pela separação e, diante da ausência da esposa em casa, Nader é forçado a contratar Razieh (Sareh Bayat) para cuidar de seu pai. A mulher é extremamente religiosa, a ponto de sentir a necessidade de telefonar para seu guia espiritual a fim de saber se seria pecado limpar um homem idoso que está doente. Razieh aceitou o trabalho porque passa dificuldades financeiras, já que seu marido Hodjat (Hosseini Shahab) está desempregado há algum tempo. Uma série de erros, desentendimentos e mal-entendidos levará os personagens a conflitos e um processo criminal que deixaria o escritor Franz Kafka (“O Processo”) orgulhoso.

O grande chamativo de “A Separação” foi Farhadi não ter tomado partido de nenhum de seus heróis, adotando um recurso ao estilo de “Rashomon” (1950), de Akira Kurosawa, que permite ao espectador conhecer cada ponto de vista e suas motivações e implicações. “Eu não queria ditar quais conclusões o espectador chegaria”, explicou o cineasta, sobre as múltiplas interpretações.

O resultado é uma obra que permite que cada pessoa enxergue o filme à sua maneira – tanto que o próprio regime iraniano não viu problemas na exibição do filme no país (onde foi um enorme sucesso) e o indicou para concorrer nos festivais estrangeiros. “Eu assisti ao filme com o público em diferentes partes do mundo e há aqueles que enxergam um ponto de vista político, enquanto outros o veem com uma perspectiva sobre a moralidade. Outros o veem como uma questão social, e outros enxergam o reflexo da vida no dia-a-dia comum. Pode ser qualquer uma dessas coisas”, sugeriu o diretor, ciente da força de sua obra.

Farhadi já afirmou diversas vezes que não utiliza o cinema como uma ferramenta política ou ideológica, porém há aqueles que acreditam que sua negação trata-se apenas de uma estratégia para fugir da censura. Durante a entrevista coletiva no festival nova-iorquino, ele deu algumas dicas de como escapa das garras dos censores. “Uma dos motivos (de não ser barrado pela censura) é que não faço julgamentos em meus filmes. Há outras formas, mas se eu falar sobre elas, não poderia mais usá-las”, explicou o cineasta.

De fato, analistas e críticos apontam diversos momentos na obra do diretor que refletem o atual Irã. A própria situação do casal, dividido entre querer sair do país em busca de uma vida melhor ou se apegar à família, seria uma metáfora sobre a dúvida de milhões de cidadãos persas.

Os questionamentos das crianças, o comportamento hipócrita dos personagens e o uso de palavras com duplos significados e interpretações seriam outras pistas deixadas por Farhadi sobre sua opinião política. Detalhes que poderiam passar despercebidos, como as ocasionais presenças da cor verde, símbolo da luta contra o regime, e o tom fortemente avermelhado do cabelo tingido de Simin, escondido sobre o lenço. São retratos de pessoas respeitam as regras – seja por imposição ou crença – apenas na superfície, questionando-as e as enfrentando em seu dia-a-dia, ainda que por debaixo dos panos da repressão.

O cineasta, é claro, não confirma nada, e até desmente ou desvia as suposições. O personagem com Alzheimer, por exemplo, seria inspirado em seu avô, que teve a doença. A garota que vê os pais se separarem (e representaria a próxima geração) e questiona o aprendizado é interpretada pela própria filha do diretor – uma situação que Farhadi garante viver atualmente, ensinando Sarina a entender o significado das palavras em persa e suas origens árabes.

Mas, nas entrelinhas, fica claro que Farhadi tem uma posição política definida e usa, sim, seu cinema como expressão. Só não pode assumir. Questionado sobre sua opção em escrever um roteiro e dirigir um filme que faz o público sair cheios de perguntas, em vez de respostas, ele explica que as dúvidas provocam o expectador a pensar, enquanto fornecer respostas anestesiaria o raciocínio. “Em todos os meus filmes, tentei multiplicar os pontos de vista em vez de impor a minha visão, para habilitar o espectador a ter ângulos diferentes da história. Não é difícil concordar que o cinema, em essência, é uma arte ditatorial, onde o diretor dita o que o espectador deve ver. É exatamente essa atitude que eu luto contra. Acredito num cinema democrático”. Obviamente, ele não está falando apenas de cinema.

E por falar em cinema, é preciso lembrar que “A Separação”, politizado ou não, é um belo filme, que transbordou as fronteiras físicas e culturais do Irã e vem conquistando reconhecimento por onde passa – e para Moadi, que já havia atuado no longa anterior do diretor, o sucesso não é uma surpresa. “Asghar (Farhadi) fala sobre as preocupações humanas e morais, questões tão vastas e grandes que nenhuma restrição ou limitação podem ser aplicadas a elas”, disse o ator principal da trama.

A universalidade das obras do diretor é exatamente seu trunfo. O cineasta acredita que a história de “A Separação” poderia acontecer em qualquer lugar do mundo, guardada as devidas diferenças culturais, e a grande prova disso é a identificação que críticos e público vêm demonstrando pelo longa.

O filme permite, inclusive, que os americanos reconheçam similaridades com os iranianos – um povo que eles estão acostumados a enxergar como extremamente distantes não apenas fisicamente, mas principalmente culturalmente. “Esse tipo de filmes pode preencher essa lacuna que a mídia não mostra, sobre as semelhanças entre nós. E isto é a coisa mais recorrente que venho dizendo nos últimos dias: as semelhanças entre as pessoas são muito maiores do que suas diferenças”.

Enquanto viaja o mundo divulgando o filme, recolhendo prêmios e pisando em ovos durante as entrevistas, Farhadi já começa a tecer seu próximo roteiro – que ele pretende filmar no Irã, apesar dos riscos de ter sua vida pessoal e profissional afetadas. “Se seu filho está com febre muito alta, o que você faria? O abandonaria ou ficaria lá? Sinto que eu tenho que ficar lá, mais do que nunca. Eu preciso trabalhar lá”, diz o diretor, contundente.