Existe uma piada maldosa que diz que se você jogar um
comprimido efervescente num copo com água, encontrará mais tensão e ação do que
num filme iraniano. Quem ri disso desconhece o cinema de Ashgar Farhadi,
responsável pelo suspense tenso de “Procurando Elly” (2009) e por um dos
melhores filmes de 2011, “A Separação”.
O cinema de Farhadi é quase uma antítese das obras dos
mais conhecidos nomes do cinema iraniano, como Abbas Kiarostami (“Cópia Fiel”),
Jafar Panahi (“Fora do Jogo”) e Mohsen Makhmalbaf (“A Caminho de Kandahar”).
Mas, cada um a seu modo, todos são importantes ao retratar a situação social e
política que vive sua país, extremamente repressivo e ditatorial, utilizando o
cinema como um grito de protesto e uma forma de comunicação com seu próprio
povo e com os demais países do mundo – de fato, o resultado é uma
cinematografia renovada e uma das mais relevantes do mundo atual.
Embora pareça uma novidade recente, Ashgar Farhadi chega
a seu quinto filme como diretor com “A Separação”. O drama extremamente
elogiado pelos críticos se tornou uma unanimidade a partir do barulho criado
nos festivais pelos quais passou: até agora, já ganhou mais de 40 prêmios,
entre eles o Urso de Ouro no Festival de Berlim, além do Urso de Prata para os
atores Peyman Moadi e Leila Hatami. “A Separação” também ganhou o Globo de Ouro
e é o favorito ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, tornando-se a segunda obra
iraniana a realizar o feito (o primeiro foi “Filhos do Paraíso”, de Majid
Majidi, em 1998), além de conquistar uma espetacular indicação a Melhor Roteiro
Original para o próprio Farhadi.
O diretor não esconde a alegria pela repercussão, mas
está consciente dos perigos que o estrondoso êxito pode acarretar à sua
carreira. “O sucesso de um filme pode convencer o cineasta a tentar repetir
seus próprios sucessos e entrar numa competição consigo mesmo. É preciso olhar
para isso como algo temporário”, declarou durante o Festival de Cinema de Nova
York. Ele também está ciente de que está chamando muita atenção para si mesmo,
o que pode ser perigoso num país como o Irã.
Sem citar especificamente o aclamado filme, o porta-voz
do Ministério das Relações Exteriores, Ramin Mehmanparast, declarou
em janeiro que é comum que as premiações exaltem longas com temáticas
relacionadas à pobreza e dificuldades de um país como o Irã. “Isso não deveria
fazer nossos artistas ignorarem os pontos positivos e as evidentes
características de nossa nação a fim de ilustrar o tipo de coisa bem recebida
pelos organizadores de tais festivais”, criticou.
Farhadi sabe que pode enfrentar problemas maiores daqui
para frente, e não apenas a censura do regime de Mahmoud Ahmadinejad. A
ditadura no Irã tem fechado o cerco contra diretores que questionam o regime
vigente e as prisões têm sido frequentes – um grande exemplo é Panahi,
condenado a seis anos de prisão domiciliar e proibido de filmar pelos próximos
20 anos!
Ciente do perigo, ao contrário de seus colegas
estabelecidos no exterior, Farhadi ainda mora em Teerã e tenta suavizar suas
declarações para não criar conflitos com o regime. “A Separação” chegou a ter
suas filmagens interrompidas após o diretor ter defendido Panahi e a produção
só voltou a receber permissão para ser realizada após ele desculpar-se
publicamente com o governo. Um ato que ele defende, ainda que lamente nas
entrelinhas. “Qual é o sentido de se fazer um filme se ele não pode ser visto
pelas 70 milhões de pessoas no meu país?”, questionou. Por esse motivo, Farhadi diz que é mais difícil conceder
entrevistas sobre seus filmes do que realizá-los e sempre solicita ao seu
tradutor que suas palavras sejam citadas com precisão, para não haver riscos dos
jornalistas interpretarem equivocadamente algumas respostas.
E o cineasta tem concedido muitas entrevistas nos últimos
meses por conta da dramática história do casal de classe média que decide se
separar. A médica Simin (Leila) quer sair do Irã e oferecer uma condição de
vida melhor para sua filha de 11 anos, Termeh (Sarina Farhadi). No entanto, seu
marido, o bancário Nader (Moaadi), recusa-se a mudar de país, pois precisa
cuidar de seu pai (Ali-Asghar Shalbazi), que sofre de Alzheimer. Os dois
decidem ir à justiça pedir o divórcio, que é recusado pelo juiz. Só essa trama
inicial já renderia discussões sobre a questão das leis e costumes iranianos,
mas o roteiro vai mais fundo e coloca os personagens em situações que os
levarão a confrontar e pôr em xeque suas próprias convicções morais.
É melhor não entrar em detalhes sobre a trama, mas é
preciso saber que o casal opta pela separação e, diante da ausência da esposa
em casa, Nader é forçado a contratar Razieh (Sareh Bayat) para cuidar de seu
pai. A mulher é extremamente religiosa, a ponto de sentir a necessidade de
telefonar para seu guia espiritual a fim de saber se seria pecado limpar um
homem idoso que está doente. Razieh aceitou o trabalho porque passa
dificuldades financeiras, já que seu marido Hodjat (Hosseini Shahab) está
desempregado há algum tempo. Uma série de erros, desentendimentos e
mal-entendidos levará os personagens a conflitos e um processo criminal que
deixaria o escritor Franz Kafka (“O Processo”) orgulhoso.
O grande chamativo de “A Separação” foi Farhadi não ter
tomado partido de nenhum de seus heróis, adotando um recurso ao estilo de
“Rashomon” (1950), de Akira Kurosawa, que permite ao espectador conhecer cada
ponto de vista e suas motivações e implicações. “Eu não queria ditar quais
conclusões o espectador chegaria”, explicou o cineasta, sobre as múltiplas
interpretações.
O resultado é uma obra que permite que cada pessoa
enxergue o filme à sua maneira – tanto que o próprio regime iraniano não viu
problemas na exibição do filme no país (onde foi um enorme sucesso) e o indicou
para concorrer nos festivais estrangeiros. “Eu assisti ao filme com o público
em diferentes partes do mundo e há aqueles que enxergam um ponto de vista
político, enquanto outros o veem com uma perspectiva sobre a moralidade. Outros
o veem como uma questão social, e outros enxergam o reflexo da vida no
dia-a-dia comum. Pode ser qualquer uma dessas coisas”, sugeriu o diretor,
ciente da força de sua obra.
Farhadi já afirmou diversas vezes que não utiliza o
cinema como uma ferramenta política ou ideológica, porém há aqueles que
acreditam que sua negação trata-se apenas de uma estratégia para fugir da
censura. Durante a entrevista coletiva no festival nova-iorquino, ele deu
algumas dicas de como escapa das garras dos censores. “Uma dos motivos (de não
ser barrado pela censura) é que não faço julgamentos em meus filmes. Há outras
formas, mas se eu falar sobre elas, não poderia mais usá-las”, explicou o
cineasta.
De fato, analistas e críticos apontam diversos momentos
na obra do diretor que refletem o atual Irã. A própria situação do casal,
dividido entre querer sair do país em busca de uma vida melhor ou se apegar à
família, seria uma metáfora sobre a dúvida de milhões de cidadãos persas.
Os questionamentos das crianças, o comportamento
hipócrita dos personagens e o uso de palavras com duplos significados e
interpretações seriam outras pistas deixadas por Farhadi sobre sua opinião
política. Detalhes que poderiam passar despercebidos, como as ocasionais
presenças da cor verde, símbolo da luta contra o regime, e o tom fortemente
avermelhado do cabelo tingido de Simin, escondido sobre o lenço. São retratos
de pessoas respeitam as regras – seja por imposição ou crença – apenas na
superfície, questionando-as e as enfrentando em seu dia-a-dia, ainda que por
debaixo dos panos da repressão.
O cineasta, é claro, não confirma nada, e até desmente ou
desvia as suposições. O personagem com Alzheimer, por exemplo, seria inspirado
em seu avô, que teve a doença. A garota que vê os pais se separarem (e
representaria a próxima geração) e questiona o aprendizado é interpretada pela
própria filha do diretor – uma situação que Farhadi garante viver atualmente,
ensinando Sarina a entender o significado das palavras em persa e suas origens
árabes.
Mas, nas entrelinhas, fica claro que Farhadi tem uma
posição política definida e usa, sim, seu cinema como expressão. Só não pode
assumir. Questionado sobre sua opção em escrever um roteiro e
dirigir um filme que faz o público sair cheios de perguntas, em vez de
respostas, ele explica que as dúvidas provocam o expectador a pensar, enquanto
fornecer respostas anestesiaria o raciocínio. “Em todos os meus filmes, tentei
multiplicar os pontos de vista em vez de impor a minha visão, para habilitar o
espectador a ter ângulos diferentes da história. Não é difícil concordar que o
cinema, em essência, é uma arte ditatorial, onde o diretor dita o que o espectador
deve ver. É exatamente essa atitude que eu luto contra. Acredito num cinema
democrático”. Obviamente, ele não está falando apenas de cinema.
E por falar em cinema, é preciso lembrar que “A
Separação”, politizado ou não, é um belo filme, que transbordou as fronteiras
físicas e culturais do Irã e vem conquistando reconhecimento por onde passa – e
para Moadi, que já havia atuado no longa anterior do diretor, o sucesso não é
uma surpresa. “Asghar (Farhadi) fala sobre as preocupações humanas e morais,
questões tão vastas e grandes que nenhuma restrição ou limitação podem ser
aplicadas a elas”, disse o ator principal da trama.
A universalidade das obras do diretor é exatamente seu
trunfo. O cineasta acredita que a história de “A Separação” poderia acontecer
em qualquer lugar do mundo, guardada as devidas diferenças culturais, e a
grande prova disso é a identificação que críticos e público vêm demonstrando
pelo longa.
O filme permite, inclusive, que os americanos reconheçam
similaridades com os iranianos – um povo que eles estão acostumados a enxergar
como extremamente distantes não apenas fisicamente, mas principalmente
culturalmente. “Esse tipo de filmes pode preencher essa lacuna que a mídia não
mostra, sobre as semelhanças entre nós. E isto é a coisa mais recorrente que
venho dizendo nos últimos dias: as semelhanças entre as pessoas são muito
maiores do que suas diferenças”.
Enquanto viaja o mundo divulgando o filme, recolhendo
prêmios e pisando em ovos durante as entrevistas, Farhadi já começa a tecer seu
próximo roteiro – que ele pretende filmar no Irã, apesar dos riscos de ter sua
vida pessoal e profissional afetadas. “Se seu filho está com febre muito alta,
o que você faria? O abandonaria ou ficaria lá? Sinto que eu tenho que ficar lá,
mais do que nunca. Eu preciso trabalhar lá”, diz o diretor, contundente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário