Quando lançou seus livros de espionagem, ainda na década de 1960, John le Carré declarou que suas obras seguiam o caminho oposto ao dos romances de Ian Fleming, criador do herói britânico 007.
Ninguém discute o grau de fantasia sugerido pelos livros e, principalmente, pelos filmes de James Bond sobre o mundo da espionagem, com suas armas mirabolantes, ternos refinados, supervilões e belas mulheres a cada esquina. Mas dá para imaginar a frustração de le Carré ao assistir a essas produções – afinal, ele mesmo foi um agente da MI-5, a inteligência britânica, e sabe muito bem que seria mais fácil encontrar um espião desabafando com seu terapeuta do que saltando de paraquedas com um rifle na mão ou uma caneta explosiva no bolso.
É nesse tom melancólico e realista que se encontra o grande trunfo de “O Espião Que Sabia Demais”, adaptação da obra de le Carré pelo cineasta sueco Tomas Alfredson (“Deixe Ela Entrar”). Com roteiro de Peter Straughan (“Os Homens que Encaravam Cabras”) e Bridget O’Connor (que faleceu em 2010), a adaptação conta a história do agente George Smiley (Gary Oldman), que recebe a missão de descobrir qual de seus colegas do mais alto posto do Serviço Secreto Inglês está trabalhando com os soviéticos durante a Guerra Fria.
Como se vê, é uma sinopse simples, presente em todos os filmes da franquia “Missão Impossível”. Mas “O Espião Que Sabia Demais” retira todo o glamour e ação resfolegante da espionagem, substituindo o charme de um Ethan Hunt por velhos cansados e decepcionados com suas próprias vidas.
Para construir esse universo, Alfredson criou um clima de opressão e claustrofobia, apoiado pela fotografia escura de Hoyte van Hoytema, e ofereceu uma história entrecortada por flashbacks, numa montagem que entrega aos poucos quem são os personagens e para onde eles poderiam ir – como se o próprio espectador estivesse investigando o caso.
Apesar de o diretor ficar conhecido apenas recentemente, ele já é um veterano na direção de filmes e séries na televisão da Suécia e sua experiência fica evidente pela composição dos quadros e movimentos de câmera: os primeiros minutos que apresentam Smiley, por exemplo, se resumem a acompanhá-lo caminhar calmamente pelas ruas de Londres – sem falas. É curioso notar que ele está cercado de grades por onde passa, como se sua rotina o trancafiasse.
Na trama, os espiões são meros funcionários públicos que precisam brigar com os chefes para conseguir financiamento para as missões. Seu entretenimento não é escalar montanhas, mas assistir a TV. O que o incomoda não são os ladrões de seu carro conversível, mas uma mosca dentro do veículo. E ele não conquista mulheres – aliás, sua esposa o deixou.
São detalhes que parecem desnecessários e até supérfluos, mas compõem um quadro complexo, com personagens cheios de facetas (ora suspeitos, ora amigáveis), interpretados por um elenco inglês formidável: além de Oldman, John Hurt, Colin Firth, Toby Jones, Mark Strong, David Dencik, Ciarán Hinds, Benedict Cumberbatch e Tom Hardy, entre outros.
Mas o show é mesmo de Oldman, inspirado como o agente à beira da aposentadoria. Seja no tom de voz, seja na forma de se sentar ou analisar as situações, o ator entrega uma atuação perfeita (como na cena em que rememora o encontro de anos atrás com seu grande inimigo, Karla, líder da KGB), apoiado por ótimas falas – como na conversa com uma ex-espiã (Kathy Burke) sobre a época da 2ª Guerra Mundial, quando a Inglaterra ainda tinha alguma relevância política no mundo.
Curiosamente, a feição melancólica de George Smiley até combinaria com as caras fechadas dos três JBs que dominaram a espionagem no mundo do entretenimento na última década: James Bond (Daniel Craig), Jason Bourne (Matt Damon) e Jack Bauer (Kiefer Sutherland). Mas o discretíssimo sorriso de Gary Oldman no final do filme, ao som de “La Mer”, mostra qual deles poderia, de fato, existir no mundo real.