sábado, 10 de março de 2012

Diretor de "A Separação" teme o próprio sucesso


Existe uma piada maldosa que diz que se você jogar um comprimido efervescente num copo com água, encontrará mais tensão e ação do que num filme iraniano. Quem ri disso desconhece o cinema de Ashgar Farhadi, responsável pelo suspense tenso de “Procurando Elly” (2009) e por um dos melhores filmes de 2011, “A Separação”.


O cinema de Farhadi é quase uma antítese das obras dos mais conhecidos nomes do cinema iraniano, como Abbas Kiarostami (“Cópia Fiel”), Jafar Panahi (“Fora do Jogo”) e Mohsen Makhmalbaf (“A Caminho de Kandahar”). Mas, cada um a seu modo, todos são importantes ao retratar a situação social e política que vive sua país, extremamente repressivo e ditatorial, utilizando o cinema como um grito de protesto e uma forma de comunicação com seu próprio povo e com os demais países do mundo – de fato, o resultado é uma cinematografia renovada e uma das mais relevantes do mundo atual.

Embora pareça uma novidade recente, Ashgar Farhadi chega a seu quinto filme como diretor com “A Separação”. O drama extremamente elogiado pelos críticos se tornou uma unanimidade a partir do barulho criado nos festivais pelos quais passou: até agora, já ganhou mais de 40 prêmios, entre eles o Urso de Ouro no Festival de Berlim, além do Urso de Prata para os atores Peyman Moadi e Leila Hatami. “A Separação” também ganhou o Globo de Ouro e é o favorito ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, tornando-se a segunda obra iraniana a realizar o feito (o primeiro foi “Filhos do Paraíso”, de Majid Majidi, em 1998), além de conquistar uma espetacular indicação a Melhor Roteiro Original para o próprio Farhadi.

O diretor não esconde a alegria pela repercussão, mas está consciente dos perigos que o estrondoso êxito pode acarretar à sua carreira. “O sucesso de um filme pode convencer o cineasta a tentar repetir seus próprios sucessos e entrar numa competição consigo mesmo. É preciso olhar para isso como algo temporário”, declarou durante o Festival de Cinema de Nova York. Ele também está ciente de que está chamando muita atenção para si mesmo, o que pode ser perigoso num país como o Irã.

Sem citar especificamente o aclamado filme, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Ramin Mehmanparast, declarou em janeiro que é comum que as premiações exaltem longas com temáticas relacionadas à pobreza e dificuldades de um país como o Irã. “Isso não deveria fazer nossos artistas ignorarem os pontos positivos e as evidentes características de nossa nação a fim de ilustrar o tipo de coisa bem recebida pelos organizadores de tais festivais”, criticou.

Farhadi sabe que pode enfrentar problemas maiores daqui para frente, e não apenas a censura do regime de Mahmoud Ahmadinejad. A ditadura no Irã tem fechado o cerco contra diretores que questionam o regime vigente e as prisões têm sido frequentes – um grande exemplo é Panahi, condenado a seis anos de prisão domiciliar e proibido de filmar pelos próximos 20 anos!

Ciente do perigo, ao contrário de seus colegas estabelecidos no exterior, Farhadi ainda mora em Teerã e tenta suavizar suas declarações para não criar conflitos com o regime. “A Separação” chegou a ter suas filmagens interrompidas após o diretor ter defendido Panahi e a produção só voltou a receber permissão para ser realizada após ele desculpar-se publicamente com o governo. Um ato que ele defende, ainda que lamente nas entrelinhas. “Qual é o sentido de se fazer um filme se ele não pode ser visto pelas 70 milhões de pessoas no meu país?”, questionou. Por esse motivo, Farhadi diz que é mais difícil conceder entrevistas sobre seus filmes do que realizá-los e sempre solicita ao seu tradutor que suas palavras sejam citadas com precisão, para não haver riscos dos jornalistas interpretarem equivocadamente algumas respostas.

E o cineasta tem concedido muitas entrevistas nos últimos meses por conta da dramática história do casal de classe média que decide se separar. A médica Simin (Leila) quer sair do Irã e oferecer uma condição de vida melhor para sua filha de 11 anos, Termeh (Sarina Farhadi). No entanto, seu marido, o bancário Nader (Moaadi), recusa-se a mudar de país, pois precisa cuidar de seu pai (Ali-Asghar Shalbazi), que sofre de Alzheimer. Os dois decidem ir à justiça pedir o divórcio, que é recusado pelo juiz. Só essa trama inicial já renderia discussões sobre a questão das leis e costumes iranianos, mas o roteiro vai mais fundo e coloca os personagens em situações que os levarão a confrontar e pôr em xeque suas próprias convicções morais.

É melhor não entrar em detalhes sobre a trama, mas é preciso saber que o casal opta pela separação e, diante da ausência da esposa em casa, Nader é forçado a contratar Razieh (Sareh Bayat) para cuidar de seu pai. A mulher é extremamente religiosa, a ponto de sentir a necessidade de telefonar para seu guia espiritual a fim de saber se seria pecado limpar um homem idoso que está doente. Razieh aceitou o trabalho porque passa dificuldades financeiras, já que seu marido Hodjat (Hosseini Shahab) está desempregado há algum tempo. Uma série de erros, desentendimentos e mal-entendidos levará os personagens a conflitos e um processo criminal que deixaria o escritor Franz Kafka (“O Processo”) orgulhoso.

O grande chamativo de “A Separação” foi Farhadi não ter tomado partido de nenhum de seus heróis, adotando um recurso ao estilo de “Rashomon” (1950), de Akira Kurosawa, que permite ao espectador conhecer cada ponto de vista e suas motivações e implicações. “Eu não queria ditar quais conclusões o espectador chegaria”, explicou o cineasta, sobre as múltiplas interpretações.

O resultado é uma obra que permite que cada pessoa enxergue o filme à sua maneira – tanto que o próprio regime iraniano não viu problemas na exibição do filme no país (onde foi um enorme sucesso) e o indicou para concorrer nos festivais estrangeiros. “Eu assisti ao filme com o público em diferentes partes do mundo e há aqueles que enxergam um ponto de vista político, enquanto outros o veem com uma perspectiva sobre a moralidade. Outros o veem como uma questão social, e outros enxergam o reflexo da vida no dia-a-dia comum. Pode ser qualquer uma dessas coisas”, sugeriu o diretor, ciente da força de sua obra.

Farhadi já afirmou diversas vezes que não utiliza o cinema como uma ferramenta política ou ideológica, porém há aqueles que acreditam que sua negação trata-se apenas de uma estratégia para fugir da censura. Durante a entrevista coletiva no festival nova-iorquino, ele deu algumas dicas de como escapa das garras dos censores. “Uma dos motivos (de não ser barrado pela censura) é que não faço julgamentos em meus filmes. Há outras formas, mas se eu falar sobre elas, não poderia mais usá-las”, explicou o cineasta.

De fato, analistas e críticos apontam diversos momentos na obra do diretor que refletem o atual Irã. A própria situação do casal, dividido entre querer sair do país em busca de uma vida melhor ou se apegar à família, seria uma metáfora sobre a dúvida de milhões de cidadãos persas.

Os questionamentos das crianças, o comportamento hipócrita dos personagens e o uso de palavras com duplos significados e interpretações seriam outras pistas deixadas por Farhadi sobre sua opinião política. Detalhes que poderiam passar despercebidos, como as ocasionais presenças da cor verde, símbolo da luta contra o regime, e o tom fortemente avermelhado do cabelo tingido de Simin, escondido sobre o lenço. São retratos de pessoas respeitam as regras – seja por imposição ou crença – apenas na superfície, questionando-as e as enfrentando em seu dia-a-dia, ainda que por debaixo dos panos da repressão.

O cineasta, é claro, não confirma nada, e até desmente ou desvia as suposições. O personagem com Alzheimer, por exemplo, seria inspirado em seu avô, que teve a doença. A garota que vê os pais se separarem (e representaria a próxima geração) e questiona o aprendizado é interpretada pela própria filha do diretor – uma situação que Farhadi garante viver atualmente, ensinando Sarina a entender o significado das palavras em persa e suas origens árabes.

Mas, nas entrelinhas, fica claro que Farhadi tem uma posição política definida e usa, sim, seu cinema como expressão. Só não pode assumir. Questionado sobre sua opção em escrever um roteiro e dirigir um filme que faz o público sair cheios de perguntas, em vez de respostas, ele explica que as dúvidas provocam o expectador a pensar, enquanto fornecer respostas anestesiaria o raciocínio. “Em todos os meus filmes, tentei multiplicar os pontos de vista em vez de impor a minha visão, para habilitar o espectador a ter ângulos diferentes da história. Não é difícil concordar que o cinema, em essência, é uma arte ditatorial, onde o diretor dita o que o espectador deve ver. É exatamente essa atitude que eu luto contra. Acredito num cinema democrático”. Obviamente, ele não está falando apenas de cinema.

E por falar em cinema, é preciso lembrar que “A Separação”, politizado ou não, é um belo filme, que transbordou as fronteiras físicas e culturais do Irã e vem conquistando reconhecimento por onde passa – e para Moadi, que já havia atuado no longa anterior do diretor, o sucesso não é uma surpresa. “Asghar (Farhadi) fala sobre as preocupações humanas e morais, questões tão vastas e grandes que nenhuma restrição ou limitação podem ser aplicadas a elas”, disse o ator principal da trama.

A universalidade das obras do diretor é exatamente seu trunfo. O cineasta acredita que a história de “A Separação” poderia acontecer em qualquer lugar do mundo, guardada as devidas diferenças culturais, e a grande prova disso é a identificação que críticos e público vêm demonstrando pelo longa.

O filme permite, inclusive, que os americanos reconheçam similaridades com os iranianos – um povo que eles estão acostumados a enxergar como extremamente distantes não apenas fisicamente, mas principalmente culturalmente. “Esse tipo de filmes pode preencher essa lacuna que a mídia não mostra, sobre as semelhanças entre nós. E isto é a coisa mais recorrente que venho dizendo nos últimos dias: as semelhanças entre as pessoas são muito maiores do que suas diferenças”.

Enquanto viaja o mundo divulgando o filme, recolhendo prêmios e pisando em ovos durante as entrevistas, Farhadi já começa a tecer seu próximo roteiro – que ele pretende filmar no Irã, apesar dos riscos de ter sua vida pessoal e profissional afetadas. “Se seu filho está com febre muito alta, o que você faria? O abandonaria ou ficaria lá? Sinto que eu tenho que ficar lá, mais do que nunca. Eu preciso trabalhar lá”, diz o diretor, contundente.

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