segunda-feira, 14 de março de 2011

NATIMORTO - CRÍTICA

Com um curta-metragem indicado ao Oscar em 2000 (Uma História de Futebol), o diretor Paulo Pachline resolveu trazer para o cinema mais uma obra do multiartista Lourenço Mutarelli – o primeiro foi O Cheiro do Ralo, dirigido por Heitor Dhalia em 2007. Adaptado do livro Natimorto, Um Musical Silencioso, o filme mostra o bizarro relacionamento entre um produtor musical e uma aspirante a cantora lírica.


Por se tratar de um trabalho de Mutarelli, não se esperaria outra coisa senão um protagonista perturbado e cheio de excentricidades – interpretado pelo próprio autor. O agente musical (assim como acontece no livro, os personagens não possuem nomes) é um caça- talentos que está em crise no seu casamento e se apaixonou por uma jovem cantora, interpretada por Simone Spoladore (de O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias e Lavoura Arcaica)

Com a promessa de apresentá-la ao um influente maestro, o agente faz um convite curioso: que os dois passem a viver num quarto de hotel, abandonando toda a vida do lado de fora. A aparência frágil do agente, que se diz assexuado, somada à possibilidade de ingressar no mundo da música, faz a cantora aceitar a proposta, com a ressalva de poder sair durante o dia para tocar a vida profissional.

A grande sacada do filme são os paralelos que o agente faz entre as mensagens antitabagistas do Ministério da Saúde e o jogo de tarô. O perturbado personagem acredita que, para cada carta do baralho esotérico, exista uma correspondente nas fotos que aparecem na parte de trás dos maços de cigarro. Por exemplo, a carta O Enforcado seria a foto na qual há um homem sufocado afrouxando a gravata (cuja mensagem é "Quem fuma não tem fôlego para nada"). E, segundo suas interpretações baseadas em cada foto, ele acredita que pode prever o dia.

É a típica ideia que só poderia ter saído da cabeça do genial Lourenço Mutarelli, que começou a carreira como autor e desenhista de história em quadrinhos premiadas (caso de Transubstanciação e O Dobro de Cinco), passou para o universo da literatura (é autor de seis romances), ingressou na dramaturgia (O Natimorto já foi adaptado para o teatro por Mario Bortolotto em 2007) e foi parar no cinema, fazendo uma ponta em É Proibido Fumar e como um interessante coadjuvante em O Cheiro do Ralo.

Toda a qualidade de seu texto, que costuma refletir suas angústias internas e as crises de síndrome do pânico que sofreu no passado, foi transposta para o filme de Paulo Pachline. Definem-se como “Natimortos” os bebês que morrem durante o parto, ou mesmo antes, ainda no útero da mãe. Ao filosofar sobre a beleza da condição do natimorto (“Imagine você ir da não-existência para a não-existência protegido pelo único ser que vai te amar, ficando afastado dos males do mundo”), compreendemos a vontade do protagonista de querer se isolar, retornando a um novo útero, seu quarto de hotel. Vale destacar a interessante iluminação Lito Mendes da Rocha, que pinta o filme com uma alternância incessante de cores, aumentando a sensação de claustrofobia.

Ironicamente, Mutarelli também é responsável pelo maior defeito do filme. Como praticamente todas as cenas se passam num único local, o longa tem como base a interpretação dos dois atores, mas as falas acabam parecendo artificiais diante da pouca experiência do multiartista na atuação. Por sorte, esse problema acaba sendo superado quando seu personagem começa a ficar cada vez mais obscuro, transparecendo as características do universo de Mutarelli.
Exibido na 33ª Mostra de Cinema de São Paulo e na edição 2009 do Festival do Rio, Natimorto entra em cartaz no dia 1 de abril de 2011.



*Texto publicado em http://www.arteview.com.br/

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