sábado, 16 de abril de 2011

HOMENS E DEUSES - CRÍTICA


Em 1996, sete monges trapistas franceses que viviam num mosteiro na cidade de Tibhirine, na Argélia, foram sequestrados e, dias depois, assassinados. O acontecimento causou incômodo na comunidade internacional, criando um desgaste entre o país africano e a França, já que a morte dos religiosos nunca foi completamente esclarecida (sabe-se que o rapto foi feito por um grupo islâmico jihadista, porém as condições das execuções ainda trazem dúvidas, inclusive com teorias sobre a morte dos frades ser responsabilidade do exército argelino, num ataque acidental).

 A história dos monges finalmente chega aos cinemas pelas mãos de Xavier Beauvois no filme “Homens e Deuses” (“Des hommes et des dieux”), selecionado como candidato oficial da França ao Oscar 2011, mas que, infelizmente, nem chegou a concorrer à estatueta. Escrito pelo próprio Beauvois em parceria com Etienne Comar, o longa não está interessado em mostrar a morte dos frades, mas suas vidas e a decisão de continuar naquele local mesmo com o risco que corriam.

 No mundo pós-11 de Setembro, em que a discussão sobre tolerância religiosa e radicalismo está em pauta, “Homens e Deuses” trata de assuntos completamente atuais, como o uso ou não da burca (em abril, entrou em vigor na França a proibição do véu que cobre o rosto das mulheres). É possível encontrar também, em suas camadas, uma discussão sobre relações econômicas, políticas e sociais entre os países de Primeiro e de Terceiro Mundo.

Liderados por Christian (Lambert Wilson, o Merovingian, de “Matrix Reloaded”), o grupo de monges convivem em harmonia com a comunidade muçulmana que mora ao redor do mosteiro – e que na verdade surgiu justamente por conta dele. Abandonados pelo estado, os moradores buscam entre os trapistas a ajuda para suprir suas necessidades básicas, como alimentação, vestuário, tratamentos médicos e medicamentos. E a vida dentro do mosteiro também se mostra harmônica: estudos religiosos (inclusive do Corão), plantação própria e rituais diários, como os cânticos católicos.

O clima de paz acaba quando trabalhadores estrangeiros são degolados há alguns quilômetros dali por um grupo radical islâmico que começa a dominar e aterrorizar a região. A invasão ao mosteiro anuncia-se inevitável e o governo argelino oferece proteção militar – prontamente recusada por Christian, por se tratar de um local de paz, onde a entrada de armas é proibida. A partir deste momento, Xavier Beauvois nos apresenta cada monge com suas dúvidas e medos sobre o destino que os espera, diferente de mostrar um grupo de idealistas corajosos e confiantes (e aqui vale um aplauso para cada um dos atores que integra o grupo: Michael Lonsdale, Olivier Rabourdin, Philippe Laudenbach, Jacques Herlin, Loïc Pichon, Xavier Maly, Jean-Marie Frin e Farid Larbi). Eles precisam decidir se vão embora, abandonando a população local e entrando em contradição com os próprios dogmas ou se ficam para cumprir sua missão religiosa de ajudar e proteger o próximo, ainda que essa decisão possa custar-lhes a vida. O diretor pinta personagens reais, que não são e não pretendem ser mártires; são velhos, cansados e que não querem morrer pelas facas de loucos. Enfim, humanos.

Mas Beauvois vai mais fundo e insere outras questões como as consequências geopolíticas dos anos 80 e 90. Os frades são franceses – um país que colonizou, explorou e abandonou a Argélia. O diretor também não tem dúvidas em mostrar que o radicalismo islâmico é ignorante – a cena em que os jihadistas invadem o mosteiro procurando pelo papa e os momentos em que Christian cita o Corão representam a diferença entre um grupo e outro –, mas uma pergunta fica no ar: até onde foi eficaz o assistencialismo social dos monges? E qual é a função religiosa do grupo? É curioso observar que, apesar de estar presente no cotidiano da comunidade, o grupo sempre aparece estudando sozinho os ensinamentos católicos, afastado da comunidade que o rodeia.

É perceptível, também, a equivalência na qual são colocados o exército argelino e o grupo jihadista: ambos sempre aparecem na tela por meio de um corte seco e barulhento, causando susto e quebrando o ritmo de paz. Beauvois também deixa claro que o militar que caça terroristas é tão radical quanto seus inimigos religiosos. 

Mas, se ainda resta alguma dúvida sobre a qualidade cinematográfica de “Homens e Deuses”, a homenagem à pintura “A Última Ceia”, de Leonardo daVinci, dá conta do recado. Apoiada pela música “O Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky, a cena é um daqueles raros momentos em que o cinema se comunica com o espectador. Tanto os personagens quanto quem assiste ao filme sabe o destino que os espera. Resta apenas aproveitar os minutos finais, com um nó na garganta, um sorriso contido no canto da boca e uma lágrima presa aos olhos.


*Texto publicado no site www.ArteView.com

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