quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

APARTHEID CULTURAL - ARTIGO

Apesar dos avanços na produção cultural, o racismo ainda persiste nas entrelinhas

O maior salário de Hollywood é de Will Smith. Oprah Winfrey é uma das vozes mais respeitadas da televisão estadunidense. A Disney estreia em dezembro sua primeira protagonista negra. Aqui, no Brasil, Taís Araújo também é a primeira negra a protagonizar uma novela da Rede Globo em horário nobre. Nos cinemas, está em cartaz Besouro, filme sobre o lendário capoeirista baiano, cujo elenco principal é formado por negros. Como se vê, finalmente a indústria cultural parece abrir mais espaço para artistas afro-descendentes no Brasil e no mundo. Mas será que isso significa uma diminuição do racismo?

O cineasta João Daniel Tikhomiroff, diretor de Besouro, viu que, infelizmente, o preconceito ainda é grande por parte da elite financiadora de produções culturais nacionais. Seu filme é inspirado no livro Feijoada no Paraíso, de Marco Carvalho, sobre o famoso capoeirista baiano da década de 1920 que, segundo a lenda local, se valia da capoeira e de poderes paranormais para combater fazendeiros escravagistas. Besouro Mangangá é citado em músicas de capoeira e também por Jorge Amado, no livro Mar Morto, de 1936. Quando procurava parcerias para financiar seu filme, cujo heroi e 90% do elenco seriam negros, Tikhomiroff esbarrou na resistência racista. “Chegaram a me perguntar se o protagonista não poderia ser branco. Se o Besouro não poderia ser branco! Fiquei chocado com essas posturas”, lamentou o diretor, em entrevista ao site do Omelete.

Há avanços, é verdade. A Disney, por exemplo, cujo símbolo de beleza é a Branca de Neve, estreia em dezembro a animação A Princesa e o Sapo, primeira produção com uma protagonista negra. No Brasil, a Globo também parece ter se rendido à necessidade e escalou atrizes negras e afro-descendentes para protagonizar três das quatro novelas no ar – Malhação, Cama de gato e Viver a vida. Taís Araújo é a primeira negra a fazer o papel principal de um folhetim no horário nobre, embora a personagem de Camila Pitanga ainda esteja presa ao estereótipo de faxineira.

Nos Estados Unidos, Will Smith recebe cerca de 20 milhões de dólares quando estrela uma superprodução. Também Samuel L. Jackson, Jamie Foxx, Morgan Freeman e Eddie Murphy são atores com salários altíssimos e que arrastam multidões aos cinemas. Em 2002, a atriz Halle Berry ganhou o Oscar de melhor atriz (por A última ceia), quebrando um tabu de 74 anos de premiações para mulheres brancas. Mas, apesar do sucesso alcançado pelos artistas negros no cinema estadunidense, o cineasta e jornalista João Moreira Salles avisa que ainda há uma imensa barreira a ser quebrada em Hollywood: não existe relação amorosa entre personagens brancos e negros.

Em artigo publicado na edição de fevereiro de 2009 da revista Piauí, Salles (que já esteve no Cursinho da Poli em 2004) lembra que, nos filmes, as namoradas, esposas ou casos amorosos dos principais astros negros – Will Smith, Jamie Foxx, Eddie Murphy, Samuel Jackson, não importa – são sempre mulheres negras. Quando o filme traz uma atriz branca e um ator negro, o relacionamento amoroso não se concretiza, caso do longa-metragem O Dossiê Pelicano, de 1993, em que o jornalista interpretado por Denzel Washington e a estudante de direto estrelada por Julia Roberts trabalham juntos contra uma conspiração. No fim do filme, contrariando a fórmula hollywoodiana, eles não ficam juntos. “Denzel Washington não tem o direito de se envolver com Julia Roberts. Se o papel fosse de Richard Gere, por exemplo, seria inconcebível supor que os dois não acabassem se apaixonando. Mas negros não podem tomar para si mulheres brancas, salvo em filmes militantes e independentes como os de Spike Lee – e, mesmo nesses casos, o sexo interracial não é um acontecimento banal da vida, mas o centro da trama narrativa”, teoriza Salles. 

É praticamente um apartheid cultural. E uma posição machista, também, porque, afinal, o inverso acontece: homens brancos podem se relacionar com mulheres negras, como se vê em clássicos como O guarda-costas (1992) ou em produções premiadas como A última ceia (2001). Vale lembrar que as séries televisivas estadunidenses – que costumam fazer muito sucesso por aqui – reproduzem a mesma armadilha. Há diversos programas cujos protagonistas são famílias negras (Eu, a patroa e as crianças, Todo mundo odeia o Chris, Um maluco no pedaço etc.), mas praticamente não há convivência interracial.

E nossa televisão nacional também não é um exemplo de igualdade entre brancos e negros, ou de valorização da cultura afro-brasileira. Nas novelas da Globo, se a história acontece no passado, os negros são apresentados como escravos; se se passar nos dias atuais, cabem aos atores negros papéis de empregadas domésticas, porteiros, motoristas etc. O professor de História do Cursinho da Poli Fernando Rodrigues lembra que os roteiros das novelas partem sempre de uma premissa que valoriza a cultura branca-americanizada-europeizada: “Minha crítica às novelas da Globo não é os atores negros serem sempre minoria no elenco, ou que o protagonista é sempre um branco, mas que as histórias narradas têm sempre uma perspectiva pequeno-burguesa, de afirmação social pela matéria. Eu queria ver uma novela de época que se passasse inteiramente num quilombo, ou que o personagem central, nos primeiros capítulos da trama, viajasse por Serra Leoa ou pelo Quênia, na África, e não pela Europa, como costuma acontecer nas produções globais.

*Texto publicado no Vox - boletim informativo do Cursinho da Poli

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