HIROSHIMA: O MAIOR ATENTADO TERRORISTA DA HISTÓRIA
É interessante pensar como há tantos filmes hollywoodianos sobre a Segunda Guerra Mundial e tão pouco material sobre a história de Hiroshima e Nagasaki, as duas cidades japonesas atingidas por bombas nucleares norte-americanas no final do conflito, em 1945. Será que a América ainda não conseguiu exorcizar o fantasma da utilização desnecessária das ogivas atômicas? Bem, no cinema, talvez não, mas, em livro, as consequências de um dos mais desumanos momentos da História são detalhadamente apresentadas em Hiroshima (Companhia das Letras), de John Hersey. Originalmente publicada na edição de 31 de agosto de 1946 da revista The New Yorker, a matéria é considerada o mais importante texto jornalístico do século XX por mostrar, por meio de seis personagens, os horrores vividos naquele fatídico 6 de agosto de 1945.
As 300 mil edições do periódico esgotaram-se em horas e cópias piratas multiplicaram o valor original da publicação. Até mesmo as emissoras britânicas ABC e BBC transmitiram em áudio a íntegra da reportagem em seus programas de rádio. Não demorou para o conteúdo ser transposto para o formato de livro, que já nasceu clássico. Não poderia ser diferente: apenas um ano depois do acontecimento, o texto de Hersey mostra em detalhes um assunto velado pelo governo estadunidense, que fez o possível para que a opinião pública não tivesse acesso às consequências catastróficas da utilização da bomba nuclear que matou mais de 150 mil pessoas – em sua grande maioria, civis. Aliás, a principal característica do livro é justamente humanizar as vítimas, saindo das estatísticas e dando voz, mostrando seu sofrimento, sua dor, e, até mesmo, sua morte. Por meio de 6 sobreviventes do bombardeio, Hiroshima mostra o efeito devastador da ogiva atômica, que destruiu casas há 30 quilômetros distantes do centro da explosão, e como a radiação devastou milhares de pessoas instantaneamente, ou a pequeno, médio e a longo prazo (servindo de argumento nos discursos e protestos contra as armas nucleares).
O efeito da obra de Hersey foi tão devastador na opinião pública que até mesmo a Marinha norte-americana acabou admitindo, posteriormente, que o uso da bomba foi precipitado, já que o alto comando militar sabia da possibilidade de rendição do Japão. Com medo de uma reação popular, os EUA impediram a publicação da obra no país asiático – que estava sob seu controle nos primeiros anos pós-guerra. E Hersey precisou de apenas cerca de 20 dias para encontrar os personagens corretos e coletar as informações necessárias, voltando a Nova York para produzir o texto sob orientação do editor William Shawn. O resultado foi uma obra considerada uma das precursoras do jornalismo literário (que teve seu auge nos anos 1960), ainda que seu texto seja completamente jornalístico, eliminando qualquer traço de subjetividade e praticamente abandonando adjetivos.
Hersey começa a matéria mostrando onde estava e o que fazia cada um dos personagens: a viúva Hatsuyo Nakamura, os médicos Masakazu Fujii e Terufumi Sasaki, o pastor da Igreja Metodista de Hiroshima Kiyoshi Tanimoto, o padre alemão jesuíta radicado no Japão Wilhelm Kleinsorge e a jovem Toshiko Sasaki, funcionária da Fundição de Estanho do Leste da Ásia (é curioso observar que o autor, em alguns momentos do texto, chama seus personagens por meio de sua característica básica –“a viúva”, “o médico jesuíta”, por exemplo –, mais ou menos como fez, posteriormente, José Saramago em Ensaio Sobre a Cegueira – no qual seus personagens não têm nomes, são chamados apenas pelas características básicas, como “o médico”, “a mulher de óculos” etc. Será que o Nobel português fez uma homenagem a John Hersey? A teoria não é tão absurda se pensarmos que, em Ensaio..., Saramago usa a “cegueira branca” como uma metáfora sobre a cegueira moral da humanidade, e a bomba de Hiroshima é um belo exemplo de como fomos cegos nesse dia...). Todos os personagens teriam observado um clarão extremamente forte segundos antes da explosão que devastou a cidade. Para se ter uma ideia da força destrutiva da bomba, a sra. Nakamura (a viúva), estava a mais de um quilômetro de distância da explosão e, ainda assim, foi arremessada pelos cômodos da sua casa.
Após a explosão, o autor concentra-se no caos, na confusão psicológica dos personagens e, principalmente, em seu desespero em tentar entender o que está acontecendo, enquanto tentam sobreviver em meio aos destroços e entulhos – caso do dr. Fujii, que precisou buscar refúgio no rio da cidade, já que os prédios ao seu redor ardiam em chamas. É nesse momento pós-explosão que Hersey escancara o poder destrutivo da bomba, com exemplos chocantes, como os das pessoas que tiveram suas roupas e quimonos fundidos à pele, ou então o caso dos soldados que tiveram seus olhos derretidos – provavelmente por estarem olhando para cima quando a ogiva explodiu. O autor também lembra a todo momento que as pessoas estavam vomitando e sentindo náuseas por conta dos efeitos da exposição da radiação. Mas, talvez, as feridas emocionais mostradas por Hersey sejam mais incômodas do que as feridas físicas: numa das passagens, a vizinha do pastor Tanimoto continua abraçada ao seu falecido bebê, apesar do cheiro que o cadáver exalava. Noutra situação, um rapaz com tendências consumistas percebe a inutilidade do materialismo quando fico próximo da morte. A paranoia do medo também esteve presente. Quando começou a chover, um grupo de pessoas achou que eram os “americanos” espalhando gasolina para queimar a população.
O idiossincrático nacionalismo e orgulho japonês também foram abordados por Hersey, como quando relatou um grupo de garotas de 13 anos que cantaram o hino nacional sob os escombros minutos antes de morrer. Os japoneses até criaram um termo específico para os “sobreviventes” da explosão nuclear – hibakusha (“pessoas afetadas pela explosão”) – já que a ênfase em estar vivo desrespeitaria os mortos. Ainda que muito rapidamente, o autor de Hiroshima procurou, também, levantar debates filosóficos e morais sobre o uso da bomba ao parafrasear o padre jesuíta Siemes, colega do personagem de Kleinsorge:
"Alguns de nós incluem a bomba na mesma categoria do gás tóxico e condenam seu uso contra uma população civil. Outros argumentam que numa guerra total, como a que se travava contra o Japão, não existe diferença entre civis e soldados, e afirmam que a bomba produziu o efeito de acabar com o derramamento de sangue, persuadindo o Japão a se render e, assim, evitar a destruição total. Parece lógico que, quem sustenta uma guerra total, em princípio, não pode se queixar de uma guerra contra civis. O grande dilema consiste em decidir se a guerra total, em sua presente forma, é justificável, ainda que sirva a um propósito justo. Não acarreta malefícios materiais e espirituais superiores a quaisquer benefícios que possa produzir? Quando nossos moralistas nos darão uma resposta clara para essa pergunta?".
É surpreendente como a questão é extremamente semelhante na grafic novel Watchmen, de Alan Moore, situada pela revista estadunidense Times entre os 100 melhores romances do século XX. Na história (recentemente transposta para o cinema), o vilão busca a paz mundial (!), mesmo que para isso ele tenha que assassinar milhões de pessoas – sacrifício, em sua visão, válido se, com isso, ele conseguir salvar bilhões. A complexidade moral, nesse caso, é praticamente a mesma levantada pelo padre jesuíta em Hiroshima.
Mas, o mais angustiante ao ler Hiroshima e conhecer todo o sofrimento que o povo japonês sofreu, é saber que, apenas três dias depois, outra bomba seria jogada na cidade de Nagasaki. Considerando que, no 11 de Setembro, morreram pouco mais de 3 mil pessoas, as bombas atômicas estadunidenses, que causaram mais de 150 mil vítimas, foram o maior atentado terrorista já praticado.
É incrível o modo que você descreveu o livro, sucinto, mas ao mesmo tempo profundo.
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